quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Lá onde o Maníaco se esconde...












Um pássaro na mão, um pássaro no ar
Um pássaro que vem
Um pássaro que vai voltar pro seu lugar

E pelo mar do sul
Azul imensidão bem longe daqui
Livre de toda pressão da minha mão

Na paz do vôo só, na paz da imensidão
A luz quase se vai e eu vou com ele viajar
No vento me deixar levar

Eu vou acima de qualquer radar
Eu vou aonde ninguém mais possa me achar
Eu vou abaixo de qualquer radar
Eu vou aonde ninguém mais possa me achar

O tempo já passou é hora de voltar
Sobre a imensidão um pássaro vai me levar
Vai me deixar

Na paz do vôo só, na paz da imensidão
A luz que já se vai, eu vou com ele viajar
No vento me deixar levar, eu vou

terça-feira, 14 de julho de 2009

A volta

Francisco abriu a porta e o filho entrou.
Não esperava encontrá-lo, e no primeiro momento acreditou que estivesse sonhando. No segundo momento pensou que estava louco. No terceiro desejou que aquilo não fosse realidade.
Era ele mesmo, como há oito anos atrás, embora fosse difícil reconhecê-lo, pois não estava sorrindo.
Não pediu licença, apenas entrou, como se tivesse saído há poucas horas e conhecesse aquela sala como a palma da mão. Os móveis não eram os mesmos da noite fatídica, mas era como se fosse.
-Por que voltô?
-O senhor não devia me perguntá por que eu fui?
-Eu não quero sabê!
-Melhor assim. Eu não ia tê resposta pra essa pergunta, mesmo.

***

Era a madrugada de sexta para sábado.
A chuva caia sem piedade sobre a favela mais esquecida da cidade mais esquecida do estado.
A Defesa Civil já havia alertado aquela gente que o lugar estava correndo risco de deslizamento, mas nem todas as famílias saíram.
A do Seu Francisco ficou. Nenhum dos membros estava disposto a enfrentar um albergue, ginásio ou coisa do gênero. Todos preferiram o risco de sua humilde casa. Muitas coisas faltavam, mas não faltava tudo.
Foram necessários 184 milímetros de chuva em poucas horas para fazer com que o morro viesse abaixo. A casa foi arrastada, mesmo sendo de alvenaria. Seu Francisco acordou com um grande estrondo e, antes mesmo de se sentar na cama, a parede de seu quarto, o único da casa, veio abaixo e deixou a lama entrar. A cama foi arrastada até a outra parede. Dona Marina acordou com o barro entrando em sua boca, aberta no grito de susto de seu sono interrompido.A casa caia ao mesmo tempo que era arrastada para o pé do morro.
Seu Francisco jamais viria a se lembrar o que ocorreu no minuto imediatamente após a lama parar. Sabe que perdeu a consciência rapidamente, quando uma telha caiu de ponta em sua cabeça, abrindo um corte que necessitou de sete pontos para ser fechado. O que ele lembra é que quando deu por si a esposa tentava fazê-lo ficar de pé e sua filha mais nova, Suellen, com doze anos na época, estava parada, vestindo apenas uma camiseta grande que a mãe lhe dera para usar de pijama grudada no corpo pequeno, totalmente coberta de lama. De alguma forma ela se salvara.
Suellen tinha mais dois irmãos e todos dormiam na sala que sempre lhes servira de quarto quando a casa veio abaixo: o corpo da irmã mais nova foi achado pela manhã. Morrera soterrada. O corpo de Horácio nunca foi encontrado. Ele tinha dezoito anos.
A casa foi reconstruída a apenas alguns metros abaixo de onde ficava a outra. Seu Francisco e Dona Marina passaram a deixar, sempre que possível, flores no lugar da antiga moradia, pois acreditavam que em algum lugar por ali ficara enterrado, para sempre, o corpo de seu filho preferido.

***

-Sua mãe morreu seis mês depois que cê foi embora. Morreu dizendo que cê tinha vindo vê ela naquele mesmo dia, mas eu não acreditei. Era verdade?
-Era.
-Filho da puta! Ela morreu por sua culpa!
-Eu sei.

***

Eram oito horas da noite de uma quinta-feira.
Dona Marina delirava na cama, ao cuidado de sua filha.
A única coisa que Suellen podia fazer era chorar. Estava sozinha em casa, o pai não voltara do trabalho ainda. Chorava pois tinha motivo, idade e medo.
A mãe falava sem parar do irmão que sumira na noite do desmoronamento, meses atrás. Dizia que ele viera visitá-la mais cedo, quando não tinha ninguém em casa, que tomara um café com ela e dissera que voltaria em breve.
Suellen chorava pois tinha medo do fantasma de Horácio. Não olhava para as janelas que davam para a rua porque acreditava que ele estaria parado, olhando para ela, em alguma delas.
Mas ele nunca estava!
A menina assustou-se quando o pai entrou em casa.
O susto dele, porém, não foi menor. Ficou com muito medo, mas não pela idéia de um fantasma de seu filho. Temia pois quando saíra de manhã Dona Marina estava com uma febre baixa, como já estava há dias, e agora ela ardia. Transpirava, tremia e falava no filho.
-Ele não tá morto! Ele não tá morto! A gente se enganou! Ele teve aqui!
Seu Francisco a levou para o hospital, onde a fizeram sumir por entre aqueles corredores intermináveis. Quando viu-se sozinho, ele chorou.
Dona Marina morreu no outro dia, pela manhã. Tuberculose, disseram os médicos.

***

-Depois que a sua mãe morreu, a vagabunda da tua irmã parô de estudá. Disse que era pa cuidar da casa, mas o que ela queria era dá, mesmo! Virou puta! Nem sei mais onde ela se meteu. Mandei ela pa fora quando soube do que ela tava fazendo.
-Eu sei onde ela tá hoje.
-E...?
-E não posso fazer nada pra ajudá, por enquanto! Talvez daqui há um ano.
-Toda essa desgraceira é culpa sua!
-Eu sei.

***

Suellen teve o primeiro namoradinho aos treze.
Ele tinha dezenove anos e acabou a engravidando. O namorado, quando soube, soqueou a barriga de dela, até fazê-la abortar.
No hospital, ao ser interrogada pela polícia, ela disse que tinha sido assaltada. Perguntaram se ela sabia que estava grávida. Ela mentiu, dizendo que não, e pediu que não contassem do aborto ao pai. Mas não havia jeito, ela era menor de idade, e Seu Francisco acabou sabendo.
Suellen apanhou dele ao sair do hospital. Foram poucos e fracos os tapas, mas ela preferia os socos na barriga a isso. Sentiu-se duplamente humilhada.
Aos quinze Suellen teve um namorado fixo, um rapaz que trabalhava numa lan-house, e o seu pai até chegou a gostar dele. Mas não durou mais que alguns poucos meses.
Aos dezesseis arrumou más companhias e começou a se prostituir. Levava os clientes para dentro da própria casa, já que o pai passava o dia fora, trabalhando. Porém um deles, certa vez, bêbado, bateu nela.
A vizinhança juntou na volta da casa e assistiu à tudo. No outro dia o que era apenas boato virou certeza. A filha de Seu Francisco era puta!
Ao virar chacota na rua, o velho mandou a filha pra rua.
Dizem as más línguas que hoje ela está "trabalhando" no Cabaré da Flávia, duas favelas adiante.

***

-Acho que começando a entendê porque cê veio.
-Eu vim buscar o senhor.
-Me levá pra onde?
-Pro lugar onde eu passei todo esse tempo.
Horácio abriu a porta e o pai saiu.

A polícia subiu o morro, naquela tarde. O tiroteio durou cerca de dez minutos e a primeira vítima foi Seu Francisco, que segundo disseram as testemunhas, estava parado na calçada, falando sozinho. O tiro acertou-lhe as coisas.
"Pobre velho! Acho que ele tava meio louco, sonhando, sei lá.", disse uma vizinha que vira tudo. "Mas é assim a realidade, !?"

terça-feira, 26 de maio de 2009

Psiu!


Estamos em recinto hospitalar, silêncio é fundamental.
Se andares por esses corredores daqui, verás tudo muito limpo, muito lindo. Cruzarás por algumas enfermeiras esterilizadas, algumas faxineiras anti-sépticas.
Se espiares por dentro desse quarto verás um senhor com a boca muito aberta, atirado na cama, muito pálido, mas não te assuste, seu ressono nos mostra que ainda está vivo.
No quarto em frente um homem sozinho olha uma televisão maior que a habitual 14', tendo ao alcance de sua mão toda sorte de previlégios.
Dois homens dividem o quarto ao lado, como podes ver, parecem conversar, um falando mais alto, pois o outro é parcialmente surdo. Não te fixes no que eles falam. Eles só querem mostrar um ao outro como estão se recuperando rápido.
Mais a frente um quarto com uma senhora vestida de rosa, sentada em uma poltrona enquanto o marido vai ao banheiro, fumar um cigarro, escondido. Ele tem câncer de pulmão.
Dobre nesse corredor e verá uma grande sala muito iluminada por altas janelas. Algumas pessoas sentam nos sofás, conversam baixinho entre si, ou leem algo interessante. Algumas dormem, pois esses sofás são mais confortáveis que as poltronas dos quartos.
Sigamos reto por esse corredor, não estranhe se tudo fica um pouco mais escuro e se o chão não é tão limpo. Mudamos de santo. Essa parte do hospital é pública.
Os quartos são habitados agora por muitas pessoas, não há nada de elegante na doença e na morte delas. As enfermeiras aqui são mais raras e os médicos quase que mitos. Alguns dizem aos outros que viram um passar no corredor, mas não estão tão certos assim.
Desçamos essas escadas. Ah, preferes ir por elevador? Vamos, então.
Como podes ver os elevadores são muito grandes, dá para colocar uma maca aqui dentro. Cuidado com essa porta pois ela é pesada.
Ah, aqui é tudo muito mais escuro. Estamos no subterrâneo do prédio. É frio, não!?
Mas os doentes daqui não ligam. Não! Não! Eles não têm ar condicionado. A dor deles fá-los esquecer o frio, é apenas isso.
Essa é a parte mais movimentada do hospital, e veja como os rostos dessas pessoas são diferentes. Parecem todos tão mais tristes! Que pena. A maioria deles tem motivo.
Esse jovem logo perto da porta desse quarto tem queimaduras de terceiro grau. E o outro do lado sofreu um acidente de moto. Cena comovente, não!?
Mas não te prenda a esses pobres coitados. Vamos mais adiante.
Se virares essa esquina, darás direto no restaurante. As comidas são frias, ruins e caras. Mas as pessoas não costumam reclamar.
Parece um labirinto, não!? Aqui é o quarto que procuramos.
É exatamente abaixo do quarto do senhor da televisão maior que 14'.
Passe do lado dessas camas e não olhe muito para as expressões de sofrimento nesses corpos. Algumas delas irão passar!
Tu estás aqui, exatamente nessa cama. Não há ninguém do teu lado e veja, que espanto! Tu estás morto!

sexta-feira, 1 de maio de 2009

Inflável

Na televisão, ao invés de um documentário ou um programa de esportes, um filme pornô pausado.
Há alguns minutos atrás alguém lhe interfonara, às 04:58 da manhã e o acordara. Ele levantara rápido, com aquela impressão de que algo muito grave deveria ter acontecido e, por causa do sono, esbarrando na parede, chegara à cozinha e colocara o fone no ouvido.
-Sim?
-Ah, desculpa, moço, apertei no botão errado.
-Tudo bem, não tava dormindo mesmo.
A voz do outro lado era feminina, embriagada e doce, mesmo por interfone. Ele, por algum motivo não tira o fone de seu ouvido, escuta a mulher apertar outro número qualquer e falar com o homem que lhe atendera.
-Sou eu, abre pra mim.
O som do portão ringindo e segundos depois passos passando na frente de sua porta, rumo ao apartamento do fim do corredor.

E agora ele estava ali, na cama, sozinho, em plena madrugada que antecedia a um fim de semana.
O sono não chega, então ele dá play no filme pornô para passar o tempo. Pensa que o vizinho provavelmente estará transando com uma mulher embriagada, com bafo de cerveja.
Então seu corpo reage aos pensamentos focados no apartamento vizinho e nos gemidos do filme. Ele caminha até o armário de parede e tira de lá uma boneca inflável. Acaricia seus cabelos loiros e olha-a nos olhos. Sente aquela vontade de um beijo caloroso que antecede uma noite de amor, mas por motivos óbvios aquela boca redonda não lhe é atrativa.
Tira as roupas da boneca e sua cueca e se deita sobre ela. Olha que vantagem de ser sozinho... ele nem precisará de camisinha! E nem sequer teve que conquistar ela antes de levá-la para cama. Poupara assim várias horas de papos melosos e promessas.
Sozinho, era isso que ele era. Não fazia questão de cultivar amigos. Sempre achara que amizades não eram nada mais que meios de se conseguir sexo fácil e de graça. Mas os gastos com os amigos excediam quaisquer gastos com putas. Ter amigos era caro e enfadonho.
O som da televisão se confunde com seus movimentos e por alguns segundos até parece que é a boneca que geme.
Por que será que sempre que transava com essa boneca, aliás, seria mesmo "transar" o termo correto, não seria uma masturbação?, bem, por que sempre que transava com essa boneca lembrava do rosto pálido da sua última amiga (que lhe enchia as noites com sexo fácil e grátis) deitada num caixão? Será que ele teria se apaixonado por ela, caso ela não tivesse morrido num acidente de carro?
Era a imobilidade da boneca que lhe lembrava a amiga. O rosto sereno dela no caixão lhe parecia tão erótico que ele não teve como ficar no velório por muito tempo. No caminho de volta para casa, dirigindo seu carro novo, ele se masturbara.
Talvez sempre que ele usava a boneca, associava sua imobilidade com a da sua falecida amiga, caso ele tivesse a coragem de subir naquele caixão e comido ela pela última vez, como ele sonhara em seu íntimo.
A solidão era rotina desde a morte dela. E era mais fácil ser só! Amizades e namoros deixam qualquer um frágil! A pessoa acaba sempre por expor suas fraquezas, seus medos, e ele detestava isso! Gostava que lhe vissem de longe, como um cara bem sucedido, sem defeitos aparentes.
O seu pênis gruda no interior da vagina de plástico. Ele precisa de mais lubrificante.
Agora falta pouco. Era bom ser sozinho. Os almoços e jantares solitários lhe davam tanto tempo para pensar em saídas possíveis para a situação política do Brasil. Ele até estava pensando em escrever um livro sobre isso.
Jamais sentia falta de alguém que lhe ligasse para assistir a um jogo de futebol juntos! Claro que não! Sozinho ele tinha oportunidade de ver quantos programas esportivos que quisesse e assim ter boas opiniões formadas sobre todos os times do país.
Pena não ter com quem compartilhá-las.
A solidão nunca lhe fez mal.
A boneca inflável jamais reclamaria, por exemplo, de sua rapidez. Ele já acabara.
Não acende nenhum cigarro. Pega o controle da televisão e a desliga. Talvez agora ele consiga voltar a dormir. O vizinho provavelmente ainda estará transando com a bêbada.

No escuro do quarto a boneca inflável levanta-se, veste sua roupa e vai embora.

domingo, 19 de abril de 2009

Smack!




Eu beijei outro cara hoje.
Por que está me contando isso?
Porque sim! Sou sincera.
Você é cruel com essa tua sinceridade.
Desculpa.
Ele beija melhor que eu?
Sim!



Por que você não gosta de beijar enquanto transamos?
Lembranças do tempo em que eu não tinha você pra pagar minhas contas.



Deve ser um problema estomacal, o que é uma pena!
Ai, amiga! Como você teve coragem de beijar ele? Eu nem falar com ele consigo direito!
Valeu a pena. Ele beija bem.
Mas e aquele bafo horrível?
Tudo bem! Eu estava gripada, mesmo! E eu dei um Halls pra ele!



Me beija, só uma última vez!
Você não entendeu? Eu não posso!
Ele nunca vai saber!
Eu não quero te beijar por causa minha, não por causa dele!
Por quê?
Eu nunca me perdoaria!
Então me deixe só.
Ok, tchau.



Por que você meche tanto a língua enquanto beija?
Pra te mostrar como ela é nervosa, gata.
Ah! Ahaha! Tudo bem! Quer subir pro meu quarto, linda?

segunda-feira, 6 de abril de 2009

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

1996


"Eu a vi nua pela primeira vez em 1996.
Tínhamos acabado de nos conhecer, e na época ela ainda não trabalhava na boate. Era apenas uma garota de beleza vulgar, sem grandes atrativos sexuais. Uma garota, entendam. Tinha o quê? Dezesseis ou dezessete anos? É... por aí. Mas ela cresceu. Agora, mais de doze anos depois, ela estava diferente. Transformara-se num mulherão, de beleza singular, embora ela, em si, continuasse vulgar.
Quando eu a conheci, ela estava começando na carreira. Cobrara pouco para ir pra cama comigo na primeira vez, pois não sabia o preço que ela valia no mercado. Na segunda vez já não cobrara nada. Dizia não trabalhar para nenhum cafetão, pois jamais sustentaria um homem. Vivia consigo e seu orgulho, muito mais saliente que suas curvas, na época. Apenas depois que acabamos o nosso caso é que ela foi para a boate. Não durou muito lá, pois em pouco tempo descobriram seu "talento". Fora trabalhar como acompanhante de velhos babões e ricos. Sorte a dela, que não viveu muito tempo nas ruas. Tamanha a sorte que nunca contraíra nenhuma dessas doenças tão comuns a mulheres da vida.
Doze anos depois...
A reencontro mais bela, mais altiva, mais orgulhosa.
De repente ela não se parece mais com a menina que eu deflorei."

"Eu vi um homem nu pela primeira vez em 1996.
Eu era apenas a menina de cabelo cacheado e fisicamente imatura, para minha idade. E agora eu reencontro esse homem novamente. De repente eu me pergunto se eu o esqueci. Claro que não. Por pior que seja, uma mulher nunca esquece sua primeira vez. Ainda mais se cobrou por ela. Hoje vejo como fui tola, poderia ter vendido minha virgindade para um velho rico, que com certeza pagaria bem mais que ele me pagara. Mas por minha inexperiência me deixei, naquela primeira e segunda vez (a segunda bem melhor que a primeira), envolver. Ora essa. Qualquer mulher sabe que sexo e sentimentos não combinam na vida real.
Agora essa sombra do meu passado está ali, parado, com um copo de whisky importado na mão. Por que isso de certa forma me incomoda? Talvez por encontrá-lo nesse ambiente que de forma nenhuma combina com as lembranças que guardei dele, bebendo nas ruas sujas dos subúrbios. Ele subiu na vida, conseguiu vencer através do que compunha. Eu venci através do que me punham.
Estranho. No meio de tanta gente só ele realmente me conhece. Essas senhoras da sociedade ficariam chocadas se soubessem que a "sobrinha" do Dr. Lafayette na verdade é uma prostituta de luxo, e que transa com o "tio" em troca dessas pulseiras que está usando. Mas aquele homem, lá no canto, sendo bajulado por essas mesmas senhoras, me conhece."

"Foi em 1996 que escrevi aquela que é considerada minha melhor composição."

"Ele é o único que me conhece.
Quem será que eu sou realmente? A refinada e intelectual mulher que se auto-intitula independente, que é capaz de comentar clássicos da música e da literatura com destreza, e que só segue nessa vida pelo eterno medo da total solidão... ou aquela putinha pobre, de mais de doze anos atrás, que aquele homem ali conheceu, assustada, orgulhosa, e com o mesmo eterno medo da solidão? Não sei. Será que ele sabe?
De repente tudo que eu queria era estar com ele de novo, pra ter alguma certeza"


"Eu sabia. Reconheci aquele velho olhar que há doze anos atrás me fisgara numa rua qualquer.
Ela quer me levar para a cama de novo, tenho certeza! Traz um velho pelo braço, que certamente a está pagando, e o faz conversar comigo, admirar a minha obra, embora esteja a olhos vistos que das minhas músicas ele não conhece quase nada. De repente outro velho aparece. Parece que eles se multiplicam neste lugar. Os dois somem. Ficamos eu e ela, sós. Ela puxa assunto, fala sobre trivialidades. Reparo que a mudança não foi apenas física, não. Ela está refinada, mais que eu, admito. Mas naquele olhar castanho e profundo eu reconheço-a como era. Ela me quer novamente. Mas de alguma forma ela mudou. Me sinto humilhado perto dela, como se o fato de termos transado algumas vezes tivesse dado a ela o poder sobre algum segredo meu. De certa forma ela evoluiu mais que eu. Ela não tem minha fama, embora talvez tenha tanto dinheiro quanto eu, mas ela tem algo que... me ofende"

"Eu preciso saber..."

"Nem faz meia hora que nos vimos naquele salão e já estamos transando. Ela me olha diretamente no rosto, me desconcerta. É isso que ela tem. Me lembro agora, com perfeição. Há doze anos atrás eu era igual. Ela mudou, eu não. Continuo sendo tão ruim na cama quanto antes, desajeitado, grosseiro. Ver o corpo dela assim, deitado sobre esses lençóis finos me joga de volta ao meu lugar de verdade, uma rua suja qualquer. É como se o corpo dela gritasse que eu não pertenço a esse lugar, que a fama não me fez melhor. Eu continuo péssimo na cama. Por que então eu só penso nisso quando estou com ela? Lembro de que há doze anos atrás foi a mesma coisa. Com as outras mulheres não! Com as outras eu não me importava, mas Deus, como eu não vou me importar se estou sendo um bom amante para uma mulher com olhos desses? Ela me humilha! Seu corpo perfeito me humilha. Suas pequenas e tímidas rugas que emolduram seus olhos me humilham! Tudo nela é perfeito. Eu sou todo imperfeição. Porra! Eu não quero sofrer sozinho!"

"Ahhh! O que ele está fazendo? Está sendo bruto, violento! De repente, depois de um olhar ele mudou de comportamento. Finco as unhas no travesseiro com toda força. Mentira! Agora percebi que estou cravando as unhas nele mesmo e ele está sangrando. Como vou pedir pra camareira trocar o lençol antes que o Lafayette suba? Olha só no que estou pensando. Manias que adquiri com a profissão, me distrair enquanto transo. Ah! Ele tem que parar! Agora me lembro, na minha primeira vez ele agira exatamente assim. Por que me submeti a passar por tudo isso de novo? Vontade de me sentir humilhada? Pronto. Agora estou humilhada o suficiente. O que eu queria, afinal? Carinho? Amor? Foda-se o carinho e o amor. Já desisti disso há tanto tempo... Na verdade eu sei muito bem o que eu queria: queria alguém que não estivesse me pagando para dormir comigo. Ele não está pagando, mas está agindo como se estivesse. Ele acabou. Acho que sim, ah, alívio. O que ele vai dizer?"

"Essa mulher me humilha. Me expõe. Vou sair daqui, não quero mais vê-la."


"Foi-se e não disse nada. Pronto... Já tenho minhas respostas..."

domingo, 4 de janeiro de 2009

Táxi!

Tudo tem um começo, um meio, um fim... mas o começo é sempre o mais difícil.
O fim geralmente é claro. Pronto acabou. Aquilo ali parecia o fim, embora ele não soubesse direito o que fosse.
Quando deu por si não reconheceu as paredes verdes daquele quarto, pintadas com tinta desbotada pelo tempo, com o quadro de um Cristo reprovador o olhando. Reconhecia tampouco a menina que cobria o corpo nu com um lençol colorido enquanto chorava. Muito menos sabia quem era aquele homem bigodudo e gordo, com o rosto inchado e cheio de veias saltadas pela testa e pelo pescoço, que gritava sem parar, balançando uma arma na mão.
Bem. Aquilo parecia o final, definitivamente.
Ele teve certeza disso quando fechou os olhos e escutou o tiro.


Como já foi dito, tudo tem um começo, que é o mais difícil.
Talvez tudo tenha empezado quando brigou com seus pais. Não, talvez tenha começado quando brigara com a namorada, o que o deixara irritado e o fizera brigar com seus pais. Não! Ele brigara com os pais por ter largado a faculdade, e por estar irritado por ter brigado com a namorada. Ou então o início era quando brigara com um professor, e por isso resolvera largar a faculdade, teria ficado irritadiço, brigara com a namorada, o que o deixara furioso e o fizera brigar com os pais.
Bem, ou talvez as coisas não tenham um início exato. Pode ter começando quando Deus disse "faça-se a luz", não para o Universo, pois disso pouco se sabe, mas para o ventre de sua mãe, mesmo.
Simplifiquemos. Vamos admitir como sendo verdade que o princípio foi quando ele resolveu beber para esquecer os seus problemas, que não eram poucos.
Bebeu demais, e de tudo um muito. Martini, vodca, tequila, cerveja..
Quando saiu do bar, com a quase certeza de que fora logrado no troco, tinha dificuldade em caminhar em linha reta. Teve certa consciência de seu estado, já estivera alcoolizado assim antes, porém sempre acompanhado. Hoje estava só.
Não tinha como ir pra casa de carro, pois não tinha um, e não tinha condições de ir à pé, já que não sabia direito pra que lado ficava sua casa.
Começou a acenar, então, para os carros que passavam. A rua era movimentada e com certeza não demoraria muito para que um daqueles fosse um táxi. Não tardou e um carro parou. A porta se abriu e o homem da frente, gordo e barbudo, perguntou um "Para onde?" meio rouco.
O bêbado não sabia exatamente. Teve que para uns segundos e raciocinar, até lembrar-se de um endereço que lhe soasse familiar. Quem sabem fosse até o endereço de sua casa!?
Dormiu.
Quando acordou o táxi já havia parado na frente de seu prédio. O rapaz entregou a carteira para o motorista, já que não tinha discernimento suficiente para procurar ele mesmo o pagamento. Talvez se tivesse sorte o homem não pegaria muito dinheiro além do que lhe era devido.
O Taxista, achando graça da situação, abriu a carteira de couro fino, deu uma olhada na foto de um dos documentos do rapaz e procurou o dinheiro. A corrida dera bem mais que os R$ 18,50 que o jovem tinha, mas o Taxista resolvera não reclamar, primeiro porque aquele fora um dia bem lucrativo, se comparado com os demais, segundo porque não iria adiantar muito reclamar com o bêbado, já que máximo que ele poderia fazer é dizer que iria entrar em casa e trazer mais dinheiro e acabar dormindo ao pôr o pé na sala.
O jovem pegou sua carteira de volta e saiu do carro, batendo a porta com força. Começou a subir as escadas do prédio, segurando-se no corrimão e olhando sempre pra cima, como que para provar para seu reflexo no vidro da porta de entrada que não estava bêbado. Quando parou no patamar, soltou-se e começou a tatear os bolsos, em busca da chave. Nada nos bolsos da calça, nada nos bolsos do casaco.
O Taxista continuara parado, olhando aquela cena meio triste, meio engraçada. Viu o rapaz procurar as chaves, apertar o botão do interfone várias vezes, sem sucesso, e com raiva, dar um soco na parede. Quando sentou-se nos degraus e encostou a cabeça na parede, o Taxista resolveu ajudá-lo.
Saltou do carro, cutucou o rapaz e disse
-Vamos, eu vou dar um jeito.
Nem o próprio homem sabia exatamento o que o levara àquele ato de compaixão. Decerto fora alguma coisa que O Padre dissera na última missa que lhe assomara ao inconsciênte. Ajudar o Próximo, isso!
Dirigiu para casa, com o rapaz dormindo e babando no banco de trás.
Sua esposa já estava no deitada quando entrou na casa simples de subúrbio, carregando o outro nos braços. Acomodou-o no sofá da sala e escreveu um bilhete para a esposa e os filhos, que não se assustassem e nem incomodassem o rapaz.
O Taxista, agora apenas Pai de Família, fora deitar-se. Sua esposa abriu os olhos quando ele entrou no quarto
-Desculpa, você tardou e eu acabei pegando no sono.
-Agora eu estou aqui, e você está acordada, é isso que importa
Dissera ele, já tirando as calças e as cuecas.
Na sala, o rapaz se mexera. Se mexera novamente e acabou por cair do sofá.
Acordou.
Olhou em volta. Não estava em sua casa, isso era certo, nem na de um amigo. Estava ainda tão bêbado quanto quando quase dormira nas escadas de seu prédio.
Cambaleando, levantou-se e procurou algum feixe de luz para guiá-lo. Havia apenas um, que saia de baixo de uma porta fechada, no fim de um corredor. Ele ouvia os gritinhos e gemidos de algum casal transando naquela direção.
Caminhou, segurando-se na parede. Porém de repente, a parede se abrira. Não, não era a parede. Era uma porta, que com o peso de sua mão acabara se escancarando. Viu um quarto, iluminado levemente por uma janela sem cortinas. Não era dali que vinham os gemidos, mas era como se fosse, pois deitada numa cama havia uma linda moça.
Nova demais, talvez, mas linda. Ou pelo menos era o que a bebida lhe dizia.
Não lembrava de ter ido à um puteiro. Na verdade só lembrava vagamente da primeira meia hora no bar. Decerto algum amigo o encontrara e o trouxera até ali. O fato ali estava ele: solteiro e com dinheiro (bem, pelo menos ele achava que tinha) num puteiro!
Iria aproveitar, claro.
Tirou a roupa e, já ereto, o que era difícil em seu estado alcoólico, subiu na cama. A moça movimentou-se e ele beijou-lhe o pescoço.
Os gemidos vindos do outro quarto aumentavam.
A menina acordou e olhou assustada o invasor de seu quarto e soltou um gritinho, ainda não tendo certeza do que estava acontecendo.
Quando ela o empurrou, ele ficou irritado. Detestava puta difícil! Ela começava a espernear, tentar chutar-lhe. Ele ainda tinha forças, embora lhe faltasse um pouco de coordenação. Arrancou os lençóis de cima dela e viu que ela estava quase nua, apenas de calcinha e claro que a moça não ia deixá-lo tirá-la, então ele resolveu que iria penetrá-la assim mesmo, com calcinha.
Meteu-lhe a mão entre as penas e afastou-a da entrada, e se atirou com força em cima dela.
Ela começava a gritar, mas tudo bem, os outros clientes não iriam se importar, já que vinham gritos do quarto do lado também. Mas mesmo assim os berros o desconcentravam, então ele preferiu fazê-la ficar mais quieta, e colocou o travesseiro no rosto dela.
Não iria sufocá-la, é claro, já que ela estava com o rosto virado para o lado, mas pelo menos abafaria os gritos. Ele detestava puta escandalosa!
O corpo embaixo dele se retorcia e ela cravava as unhas nas suas costas! Ah, ela gostava de sexo selvagem? Então era assim que teria.
Ele metia cada vez mais forte, mais rápido.
Qual seria o nome dela?
Mais rápido, mais rápido.
Então ela gritou com toda sua força. O travesseiro não foi o suficiente para abafar o desespero que se evadia pela sua garganta.
A porta se escancarou. Um homem gordo e bigodudo, vestido apenas com uma cueca, olhou a cena, com os olhos arregalados. Uma mulher com a mesma expressão estava atrás de si, gritando.
Merda de cafetão! Até o fizera broxar!
Então o homem voltou, com um revólver. Gritava coisas que os gritos da outra mulher e da própria menina, agora coberta com um lençol colorido, não permitiam entender.
Acendeu as luzes, iluminando o quarto verde e o rosto do Cristo, tão reprovador quanto aquele homem parado na sua frente.
Bem... Ele não sabia quando tudo aquilo começara, mas aquilo parecia o final, definitivamente.
Ele teve certeza disso quando fechou os olhos e escutou o tiro.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Um pouco de Saramago






Entrevista de José Saramago ao Jornal da Globo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Contraponto

(Os faróis do velho Gol iluminaram o homem parado na escura praça, quase deserta. O homem, com um capacete vermelho, aproximou-se do carro, que mesmo parado continuava com o motor ligado, e bateu no vidro fumê do lado do motorista. Uma fresta abriu-se na janela e uma mão fina, mas mal-cuidada, apareceu segurando um rolinho de dinheiro. As mãos dele contam rapidamente a quantia. A mão direita dele guarda rapidamente o rolinho no bolso direito. A mão esquerda dele retira um saquinho do bolso esquerdo e o entrega na mão esquerda dela. Ela usa a mão esquerda para fechar a fresta do vidro. As duas mãos dele se escondem nos bolsos, para fugirem do frio. Ele se vira de costas e volta para a sua moto. Ainda tinha outras encomendas a entregar.)

Dentro do Gol não estava apenas a mulher de mãos mal-cuidadas. Ah! O nome dela é Yara, caso alguém queira saber.
No banco do carona um homem olha-a, com certa pena.
-Há quanto tempo você cheira?
-Dois anos. - responde ela, já com a nota de R$ 10,00 na narina esquerda.
Ela aspira.
Ela respira.
Seus olhos viram-se para o teto do carro, com seu forro sujo pela fumaça de cigarros, e depois somem atrás das pálpebras. O coração bate.
Ele diz
-Dois anos. Nós não nos víamos há mais de dois anos, quem diria. Você mudou tanto.
-Você também
ela responde, de olhos fechados, antes de perguntar
-Você parou de cheirar?
-Sim, há mais de um ano!
-Ainda dá tempo de voltar. Sobrou um pouco. Quer?
-Não. O tempo que passei na clínica me mudou.
Ela pula pra cima dele, agarra-o pela gola da camisa azul e, cravando seus olhos de pupilas dilatadas na luz do poste que refletia nos olhos dele, diz
-Eu te amei, mesmo, sabia!?
-Eu também te amei
ele disse.
-Por que nunca demos certo?
-Por que éramos diferentes.
-Nós mudamos.
-Mas continuamos diferentes. Seremos sempre a água e o vinho. O bem e o mal. O ing e o yang. O preto e o branco.
Ela crava as unhas na gola dele
-Seremos sempre homem e mulher. Não existe bem sem mal! Nem preto sem branco! Nem ing sem yang!
-Nem Chitãozinho sem Xororó
ele debocha.
Ela ri
-Eu te amei.
-Eu também.
ele a faz soltar sua gola.

(O nome dele é Ignácio. Fora o melhor amigo de Yara por muito tempo. Cresceram juntos. Descobriram o sexo juntos. Descobriram um ao outro e a si mesmos. Juntos. O clichê dos opostos que se atraem. Não tinham nada a ver um com o outro. Nada.)

Ignácio começou a falar calmamente
-Sabe. Eu sempre quis ser como você. Eu achava nas drogas uma maneira de me rebelar, de ir contra meus pais, contra aquela maldita escola e aquelas professoras verruguentas, mas no fundo, lá no fundo, mesmo, o que eu sempre quis foi me encaixar em todas as regras, como você. Você era linda, inteligente, popular. Poderia ser a estrela de qualquer filme bobalhão adolescente. Você era perfeita. Sabia tudo sobre todos os livros, todos os músicos, política, economia, sociologia. Eu era apenas um hippie, meio gótico, meio punk. Qualquer novidade de visual me atraia, mas por dentro eu sabia que só era revoltado com o mundo por não saber como me encaixar a ele. Experimentava todas as drogas, andava com gente que sabia que nunca iria me fazer bem. Meus pais, coitados, sofreram tanto por minha culpa. Sabe, Yara, quando meus velhos nos viam juntos, ficavam felizes. Você era a única coisa que deixava eles felizes. Eles achavam que você iria me mudar, "entrar nos trilhos". Eles estavam certos. Foi você que me fez mudar. Se hoje sou considerado um exemplo na clínica de reabilitação, foi por sua causa. Eu me agarrava nas suas lembranças, em todas as vezes em que eu te oferecia um baseado e você recusava. Você era perfeita. Eu mudei. Por você.

Yara começou a falar, não tão calma quanto ele fora
-Já eu não aguentava a felicidade, a perfeição. Eu via tudo e percebia que meu mundo era cor de rosa, minha família perfeita, minhas notas brilhantes. Mas não era aquilo que eu queria. A segurança sempre me amedrontou. Me deixava insegura. Você era diferente. Era loucão, não estava nem aí pra nada. Eu queria ser desligava dessa merda de mundo. Sabe aquela sensação de estar desperdiçando sua vida? De estar dando atenção demais a coisas que não levam a nada? As músicas não me faziam felizes, nem os livros, nem porra nenhuma. Só você me fazia feliz. Só com você eu me sentia completa. Meus pais, coitados, sempre foram felizes. A única sombra de preocupação que passava pela cabeça deles era se um dia eu resolvesse transar antes de ir a uma ginecologista. Lembra da nossa primeira vez? Eu só fodi com você porque minha mãe disse "Vai filha, faz o que quiser", pois eu tava tomando pílula que a ginecologista me recomendou na semana anterior. Até pra sentir prazer eu necessitei de permissão. Quando você foi embora, me senti vazia. Completa de vazio. Solidão dentro dos olhos. O mundo na garganta, mas trancado lá. Depois que você foi embora... Eu mudei. Por você.

(Não preciso dizer que os dois sabiam que nunca dariam certo)

Ele disse
-Vou descer e chamar um táxi.
-Me leva com você!
ela implorou.
-Eu vou voltar para o lugar de onde eu não deveria ter voltado.
-Você vai embora?
-Sim.
-Eu poderia completar você.
-Nós já nos completamos.
-Então por que não podemos ficar juntos?
-Porque somos diferentes. Sempre fomos. Podemos mudar, mas sempre seremos diferentes.
-Seria chato se fôssemos iguais.
-As coisas que dão certo são chatas.
ele concluiu.

(Ele desceu do Gol, pegou o celular e discou o número do táxi. Ela ficou dentro do carro, o observando parado na esquina, até o outro carro passar por ali e levá-lo embora. Em qualquer despedida ela sempre tinha a sensação de que era para sempre...)

Yara pegou o celular, procurou um número na agenda, com certa dificuldade, pois chorava convulsivamente, engasgando, engolindo o pranto, falando coisas sem sentido. Quando a pessoa do outro lado da linha atendeu ela gritou
-Mãe. Por favor. Eu preciso de ajuda. Eu vou parar, eu juro!

Ignácio entrou no táxi, cravou os cotovelos nas pernas e escorou a cabeça nas palmas das mãos.
-Para onde, senhor
perguntou o taxista.
-Para a Vila Santinho.
-Aquele lugar é barra pesada. Eu só posso deixar você na entrada da vila. Quer ir pra lá mesmo assim?
-Sim, eu quero.