terça-feira, 14 de julho de 2009

A volta

Francisco abriu a porta e o filho entrou.
Não esperava encontrá-lo, e no primeiro momento acreditou que estivesse sonhando. No segundo momento pensou que estava louco. No terceiro desejou que aquilo não fosse realidade.
Era ele mesmo, como há oito anos atrás, embora fosse difícil reconhecê-lo, pois não estava sorrindo.
Não pediu licença, apenas entrou, como se tivesse saído há poucas horas e conhecesse aquela sala como a palma da mão. Os móveis não eram os mesmos da noite fatídica, mas era como se fosse.
-Por que voltô?
-O senhor não devia me perguntá por que eu fui?
-Eu não quero sabê!
-Melhor assim. Eu não ia tê resposta pra essa pergunta, mesmo.

***

Era a madrugada de sexta para sábado.
A chuva caia sem piedade sobre a favela mais esquecida da cidade mais esquecida do estado.
A Defesa Civil já havia alertado aquela gente que o lugar estava correndo risco de deslizamento, mas nem todas as famílias saíram.
A do Seu Francisco ficou. Nenhum dos membros estava disposto a enfrentar um albergue, ginásio ou coisa do gênero. Todos preferiram o risco de sua humilde casa. Muitas coisas faltavam, mas não faltava tudo.
Foram necessários 184 milímetros de chuva em poucas horas para fazer com que o morro viesse abaixo. A casa foi arrastada, mesmo sendo de alvenaria. Seu Francisco acordou com um grande estrondo e, antes mesmo de se sentar na cama, a parede de seu quarto, o único da casa, veio abaixo e deixou a lama entrar. A cama foi arrastada até a outra parede. Dona Marina acordou com o barro entrando em sua boca, aberta no grito de susto de seu sono interrompido.A casa caia ao mesmo tempo que era arrastada para o pé do morro.
Seu Francisco jamais viria a se lembrar o que ocorreu no minuto imediatamente após a lama parar. Sabe que perdeu a consciência rapidamente, quando uma telha caiu de ponta em sua cabeça, abrindo um corte que necessitou de sete pontos para ser fechado. O que ele lembra é que quando deu por si a esposa tentava fazê-lo ficar de pé e sua filha mais nova, Suellen, com doze anos na época, estava parada, vestindo apenas uma camiseta grande que a mãe lhe dera para usar de pijama grudada no corpo pequeno, totalmente coberta de lama. De alguma forma ela se salvara.
Suellen tinha mais dois irmãos e todos dormiam na sala que sempre lhes servira de quarto quando a casa veio abaixo: o corpo da irmã mais nova foi achado pela manhã. Morrera soterrada. O corpo de Horácio nunca foi encontrado. Ele tinha dezoito anos.
A casa foi reconstruída a apenas alguns metros abaixo de onde ficava a outra. Seu Francisco e Dona Marina passaram a deixar, sempre que possível, flores no lugar da antiga moradia, pois acreditavam que em algum lugar por ali ficara enterrado, para sempre, o corpo de seu filho preferido.

***

-Sua mãe morreu seis mês depois que cê foi embora. Morreu dizendo que cê tinha vindo vê ela naquele mesmo dia, mas eu não acreditei. Era verdade?
-Era.
-Filho da puta! Ela morreu por sua culpa!
-Eu sei.

***

Eram oito horas da noite de uma quinta-feira.
Dona Marina delirava na cama, ao cuidado de sua filha.
A única coisa que Suellen podia fazer era chorar. Estava sozinha em casa, o pai não voltara do trabalho ainda. Chorava pois tinha motivo, idade e medo.
A mãe falava sem parar do irmão que sumira na noite do desmoronamento, meses atrás. Dizia que ele viera visitá-la mais cedo, quando não tinha ninguém em casa, que tomara um café com ela e dissera que voltaria em breve.
Suellen chorava pois tinha medo do fantasma de Horácio. Não olhava para as janelas que davam para a rua porque acreditava que ele estaria parado, olhando para ela, em alguma delas.
Mas ele nunca estava!
A menina assustou-se quando o pai entrou em casa.
O susto dele, porém, não foi menor. Ficou com muito medo, mas não pela idéia de um fantasma de seu filho. Temia pois quando saíra de manhã Dona Marina estava com uma febre baixa, como já estava há dias, e agora ela ardia. Transpirava, tremia e falava no filho.
-Ele não tá morto! Ele não tá morto! A gente se enganou! Ele teve aqui!
Seu Francisco a levou para o hospital, onde a fizeram sumir por entre aqueles corredores intermináveis. Quando viu-se sozinho, ele chorou.
Dona Marina morreu no outro dia, pela manhã. Tuberculose, disseram os médicos.

***

-Depois que a sua mãe morreu, a vagabunda da tua irmã parô de estudá. Disse que era pa cuidar da casa, mas o que ela queria era dá, mesmo! Virou puta! Nem sei mais onde ela se meteu. Mandei ela pa fora quando soube do que ela tava fazendo.
-Eu sei onde ela tá hoje.
-E...?
-E não posso fazer nada pra ajudá, por enquanto! Talvez daqui há um ano.
-Toda essa desgraceira é culpa sua!
-Eu sei.

***

Suellen teve o primeiro namoradinho aos treze.
Ele tinha dezenove anos e acabou a engravidando. O namorado, quando soube, soqueou a barriga de dela, até fazê-la abortar.
No hospital, ao ser interrogada pela polícia, ela disse que tinha sido assaltada. Perguntaram se ela sabia que estava grávida. Ela mentiu, dizendo que não, e pediu que não contassem do aborto ao pai. Mas não havia jeito, ela era menor de idade, e Seu Francisco acabou sabendo.
Suellen apanhou dele ao sair do hospital. Foram poucos e fracos os tapas, mas ela preferia os socos na barriga a isso. Sentiu-se duplamente humilhada.
Aos quinze Suellen teve um namorado fixo, um rapaz que trabalhava numa lan-house, e o seu pai até chegou a gostar dele. Mas não durou mais que alguns poucos meses.
Aos dezesseis arrumou más companhias e começou a se prostituir. Levava os clientes para dentro da própria casa, já que o pai passava o dia fora, trabalhando. Porém um deles, certa vez, bêbado, bateu nela.
A vizinhança juntou na volta da casa e assistiu à tudo. No outro dia o que era apenas boato virou certeza. A filha de Seu Francisco era puta!
Ao virar chacota na rua, o velho mandou a filha pra rua.
Dizem as más línguas que hoje ela está "trabalhando" no Cabaré da Flávia, duas favelas adiante.

***

-Acho que começando a entendê porque cê veio.
-Eu vim buscar o senhor.
-Me levá pra onde?
-Pro lugar onde eu passei todo esse tempo.
Horácio abriu a porta e o pai saiu.

A polícia subiu o morro, naquela tarde. O tiroteio durou cerca de dez minutos e a primeira vítima foi Seu Francisco, que segundo disseram as testemunhas, estava parado na calçada, falando sozinho. O tiro acertou-lhe as coisas.
"Pobre velho! Acho que ele tava meio louco, sonhando, sei lá.", disse uma vizinha que vira tudo. "Mas é assim a realidade, !?"