sexta-feira, 26 de setembro de 2008

Sobre a Consciência de Ser

Ela está sozinha nesta noite, nenhum som perturba a calmaria da sua sombria sala de estar. O abajur de canto lança uma luz avermelhada sobre o seu rosto, assim como sobre um prato de frutas abandonado na mesinha de centro. De repente ela perdera a fome.
Está ali, sentada, na doce contemplação de ver o rápido escurecimento da maçã picada, enquanto sua mente divaga sobre coisas que jamais seria possível explicar aqui em palavras.
De repente, como se uma força imensa a tivesse dominado, ela levanta do sofá, desliga o abajur e corre para o quarto.
Abre as gavetas com força, tira as primeiras peças íntimas que suas mãos encontram (uma calcinha preta e um sutiã rosado) e caminha de pés descalços até o banheiro.
Liga as luzes, despe-se da roupa que carregara o dia inteiro, deixando-a cair sob seus pés e olha-se no espelho. Pergunta-se se ainda seria bela o suficiente. Seu rosto esboça um sorriso fraco, mostrando um olhar doce e submisso perante seu reflexo.
Então ela tem daqueles impulsos que são difíceis de explicar. Apaga as luzes do banheiro e assim, no escuro, mesmo, liga o chuveiro. Há apenas uma fonte de claridade, vinda da pequena janela de vidro jateado, no lado oposto da peça. Assim ela começa o banho. Vê o vapor subindo lentamente, envolvendo seu corpo como uma seda branca, um véu transparente.
O sabonete escorrega em seu corpo com uma delicadeza que ela nunca sentira antes. A água escorre em seu rosto com a velocidade das lágrimas mais desesperadas.
A sensibilidade aflora em seu corpo. Sobe-lhe um nós na garganta, uma vontade de chorar e de gritar, e só não se atreve a tal porque sabe o quanto isso seria despropositado. Que motivo teria?
Sai do banho e passa a toalha áspera pelo corpo, veste a calcinha, cuidando para não deixa nenhum pelo pubiano aparecendo, e de repente sente-se tola. Sente como se estivesse vestindo-se para o amante mais esperado de sua vida, mas... ela ocupará a cama sozinha essa noite, assim como vinha fazendo nos últimos dez anos de sua vida.
Pega o secador em um armário e começa a secar seus cabelos ruivos. Os olhos fixam-se na imagem embaçada do espelho. Ali refletida está sua alma: sem definição, sem contorno, sem forma e conteúdo. Apenas algo que existe sem ter um porquê.
Sente as lágrimas vindo-lhe, enfim. A solidão lota o recinto, lota seu corpo. Chorando, escova os dentes. Engasga-se com o creme dental e acaba a escovação antes de sentir sua boca realmente limpa.
Ainda de pés descalços vai para seu quarto. Analisa-se no espelho que está em um canto, meio que escondido por um cabideiro, como se tivesse vergonha de se mostrar para sua dona, vergonha de refletir uma existência tão triste. Olha-se e nota o quanto na verdade foi descuidada na escolha da roupa de suas núpcias solitárias: "Uma peça de cada cor!?"
Vai até a gaveta e revira tudo, até achar o sutiã que combinava com a calcinha. Tira o que vestia e antes de colocar o outro, olha-se novamente no espelho. Hun, havia o exame de mamas, vira na televisão que era necessário fazê-lo sempre. Começa, então, na frente do espelho, a apalpar-se. Nada no sei esquerdo. Continua a apalpar-se. Nada no direito, felizmente. Mesmo assim, continua a tocar-se. Vê que no rápido exame seu corpo reagira, sua pele arrepiara.
Ali, de seios descobertos em frente ao espelho, prossegue a olhar-se como fizera rapidamente no banheiro. Sim, definitivamente ainda era bonita. Seus olhos castanhos ainda emitiam um brilho de vivacidade e de malícia, sua boca ainda arqueava-se ainda em sorrisos provocadores. Seu corpo não continuava como há quinze anos atrás, é verdade, ficara um pouco mais gorda, mas continuava nas proporções ideais para uma mulher de sua idade.
Sente então uma necessidade de ficar nua completamente e sem pudor. Se em quarenta e cinco anos não aprendera a conviver com seu corpo e não entendia sua alma, como ainda vivia? Precisa ficar nua, e fica. Tira a calcinha e atira-a na maçaneta da porta (em qualquer outro dia ela teria se censurado por esse ato pouco higiênico).
Lembra-se do falecido marido, único homem a quem se entregara, mas que já não estava mais ali para aquecê-la em noites frias. Eles haviam se envolvido em um acidente de carro, dez anos atrás. Ela, de cinto, sofrera apenas um corte no joelho, onde ficou uma cicatriz em forma de sorriso, que ela fazia tudo para esconder. Ele, sem cinto, morrera na hora. Desde então apenas ela dorme na confortável cama de casal.
Deita-se, deixando seu corpo escorregar pela colcha colorida. Mais uma recordação lhe ocorre, mas essa tão dolorida que ela fez de tudo para esquecer novamente.
Sua mão esquerda começa a deslizar pelo corpo. Barriga, seios, pescoço, nuca. A outra estaciona entre suas pernas. Seus dedos com unhas sem pintura começam a fazer movimentos tímidos, calmos. Há muito tempo não fazia aquilo.
Sente que ainda vivia, que enfim não morrera no acidente e nem de tristeza e solidão.
Os movimentos da mão direita ficam um pouco mais rápidos e ela sente a auréola de seus seios perceberem o estímulo.
Neste momento ela faz aquilo por dois sentimentos antagônicos: a vontade de satisfazer seu corpo e a necessidade de se humilhar, pois sim, ela faz isso em frente ao espelho apenas para ver seu rosto contorcido de prazer chorar. Chorar de saudade do marido e de vergonha, como se ele ali estivesse a olhando de forma acusadora. Sem entender a si mesma, ela resolve humilhar seus fantasmas, também. A culpa era dele se ela estava sozinha. Ele a abandonou e ela precisa prová-lo que não sentia mais sua falta.
Masturba-se agora com mais velocidade, com mais força, violência, até. Quer inflingir em seu corpo toda a sua angústia e desespero.
É nesse momento que a porta se abre. Ela vê, espantada, o rosto de seu filho, de dezessete anos ,surgir pela fresta da porta.
-Mãe, eu cheguei - ele diz, milésimo antes de olhar para dentro do quarto.
Os olhos dele fixam-se, espantados, na estranha e inesperada figura que se contorcia na cama. Não entende de primeiro o que se passa, mas assim que seu cérebro processa o estranho espetáculo, um soluço escapa-lhe pela garganta. Ele dá um passo para trás e fecha a porta com uma batida forte. Caminha a passos largos para seu quarto e, com mais força ainda, bate mais essa porta.
Ela fica ali, estática na cama. As pernas ainda levantadas, a mão ainda sobre suas intimidades. Era como se qualquer movimento fosse fazer com que ela percebesse que o que acabara de se passar tinha sido real.
Mas assim que baixa as pernas e cobre-se instintivamente, notou que sua atitude e seus sentimentos não eram o que esperava. Ela não sente vergonha. Sente raiva. O que ela vira de relance nos olhos de seu filho não seria a mesma repreensão que ela imaginava ver nos olhos do fantasma de seu marido? Que culpa tinha ela de ainda sentir desejo, de ainda estar viva?
Desde a morte de seu marido, sentiu-se consciente do que era. Consciente de sua existência.
Então faz algo que não se julgava capaz. Descobre-se novamente e recomeça a masturbar-se. Exagera em seu prazer, emite gritos que não se julgava mais capaz de dar, com a cruel esperança que seu filho escutasse.
Agora ele tinha que entender que ela não era apenas aquela que lhe sustentava e cuidava. Ela tinha também que cuidar de si.
Os movimentos mais rápidos, os gemidos mais altos.
É essa a maneira que ela tem de mostrar ao mundo que sim, ela iria mudar. Deixaria seu altruísmo de lado. Nesse momento é o mais egoísta que pode. Não pensa no filho, no que ele sente nesse momento. Ela quer o direito de suspirar de êxtase, e não só de cansaço.
A partir do próximo fim de semana iria começar a sair, ir em festas com suas amigas, aproveitar o resto de beleza que ainda lhe restava. Mudaria. Era necessário.
O último grito foi seguido por um silêncio que a assustou. Cobre-se novamente, sentindo o rubor subindo suas faces e confundindo-se com seus cabelos ruivos. O que fizera, afinal? O que deveria fazer no outro dia? Não queria essas respostas.
Talvez elas nem existissem.

segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Sobre o Amargor Matutino

“Mas, hey, mãe, alguma coisa ficou pra trás...

Antigamente eu sabia exatamente o que fazer”


Por mais agradável que tenha sido a noite, a manhã é sempre amarga. Essa é uma constatação bem óbvia, na verdade. É sempre assim. Você acorda, às vezes de bom humor, às vezes não, olha-se no espelho, vê seu rosto desconfigurado pelo sono e, dependendo do seu humor, sorri. Escova os dentes, afinal tem que prezar pelo sorriso sempre belo, por mais forçado que ele possa ser, e lava o rosto. Então vem o amargor. Por mais doce que seja o café, o suco, a fruta, sempre sentirá o amargo causado pela doçura do creme dental, na primeira mordida, no primeiro gole. Não deveria ser assim, mas é. O gosto bom do novo dia dura tão pouco. Assim é a vida. Iludimo-nos por uma doçura tênue e esquecemos que o amargor logo virá. Sempre vem! Mas nessas manhãs é bom saber que logo nosso paladar voltará ao normal. Os gostos bons acabarão se sobressaindo! Afinal talvez os amargores da vida sejam necessários pra que possamos continuar sorrindo.


“Mas, hey, mãe, por mais que a gente cresça

há sempre alguma coisa que a gente não consegue entender.”