quarta-feira, 13 de agosto de 2008

Ele, 29, Ela, 61

Ele, vinte e nove anos e oito rugas cortando-lhe a face.
Ela, sessenta e um anos e três diferentes tipos de creme facial na necessaire.
Ele, roncando com a cabeça encostada na poltrona de couro rasgada em um ônibus que sacolejava em uma estrada de terra.
Ela, sentada numa mesinha de metal em uma lancheria suja de rodoviária, tomando cerveja quente.
Ele, com o orgulho ferido.
E Ela não tendo do que se orgulhar.

O chamaremos pelo nome artístico, Palhaço Maroto, embora ele o deteste
A chamaremos de Avó, pois é esse o papel que ela emprega nesse momento.

Maroto volta pra casa, depois de oito anos longe. Como já disse esse prolixo narrador, Ele traz consigo oito rugas, e mais nenhuma causada por um eventual sorriso. Já não sorri há muito tempo, pelo menos não com vontade. Ele retorna para o interior, para o lugar que jurou que nunca mais pisaria, quando brigou com seu pai. Maroto viajou para a cidade grande, onde acabou por ver-se passando fome. Esmolou e com o dons administrativos que Deus lhe negou, resolveu abrir seu próprio negócio: divertir as pessoas. Para isso comprou três bolinhas coloridas e dois tons de maquiagem facial, e desde então virou malabarista de rua. As moedas que raramente ganhava nos semáforos não lhe compravam nem pão suficiente, nem dignidade. Morou embaixo de uma ponte por alguns meses, até fazer amizade com outro malabarista que lhe ofereceu um teto decente: um barraco de compensado com telhado de folhas de zinco, em uma favela afastada, e ele considerou isso um progresso. E assim Ele viveu por oito anos até o seu amigo morrer, atropelado por um motociclista. Maroto viu-se novamente passando fome. E por isso agora Ele volta.

Avó espera os netos na rodoviária. Netos, estes, que são sua única razão de viver. Não fosse por eles, Ela já teria tomado vários daqueles comprimidos de tarja preta que ocupam uma gaveta no seu quarto, afinal nem em Deus ela acredita mais, mas ela não quer envergonhar os netos. Os filhos, destes já nem lembra. São tratados apenas como mais um móvel dentro da casa. Interesseiros são esses filhos que a respeitam apenas por questões financeiras! Ela os repudiava, talvez pelas lembranças que lhe trazem. São a cara do pai, um homem grosseiro que durante a gravidez do último filho, a bateu. Esse homem tivera várias amantes e, não mais que de repente, foi misteriosamente morto a tiros num bar vazio, numa noite fria.

Maroto e Avó não se conhecem. Ainda.

Mas agora o ônibus já chegou na rodoviária e Maroto desce as escadas ainda cambaleante de sono e tirando remelas dos olhos. Ele não está caracterizado. Traz em si uma roupa meio suja pelas 17 horas de viagem e, é desnecessário dizer, rasgada pelo longo tempo de uso. Maroto sente-se mal, inclusive fisicamente. Traz a sensação de que as nádegas estão molhadas de suor, na melhor das hipóteses. Maroto vai ao guichê nº 5 e é surpreendido ao saber que o preço da passagem aumentara substancialmente, e que ele não conseguiria pagar com o pouco que tinha. Decidiu que pela última vez em sua vida iria se caracterizar novamente. Vai ao banheiro da rodoviária e troca-se com pressa, mas não sem antes sujar mais o já tão imundo vaso sanitário. Olha no relógio e nota que tem 20 minutos para conseguir os seis reais que lhe faltam, e isso lhe parece dificílimo. Então ele olhou para dentro de uma das lancherias e viu uma senhora parada. Até parecia sua finada mãe, não fossem os anéis e colares brilhantes que trazia consigo. Ela parecia a única capaz de lhe dar uma esmola que não fossem meras moedas.

Avó viu o Palhaço ao longe. Ele a olhara e se agora se dirigia à entrada da lancheria, e no momento que ele foi rapidamente ocultado por um pilar, Ela aproveitou para tirar dois dos seus anéis e colocar no bolso, para diminuir o prejuízo, caso fosse um assalto.

Ele chegou na frente dela, tirou o chapéu, fez uma reverência e começou, ali mesmo, a fazer malabarismos. Nem uma palavra, nenhum som. Mas por um breve momento ela olhou, com seus olhos de azul safira, nos olhos dele e viu que eram tristes, embora a boca sorridente mostrando dentes tortos e amarelados lhe dissesse o contrário.

O dono da lancheria, ao ver a cena, temeu perder tão distinta cliente, caso a velha se assustasse, e, aos empurrões, tirou Maroto do estabelecimento. Depois o gordo microempresário voltou na mesa para desculpar-se com Avó, mas ela não lhe deu ouvidos. Deixou uma nota na mesa e saiu correndo na velocidade que suas pernas cheias de estrias permitiam, atrás do palhaço.

Maroto desistira após a investida do gordo dono do buteco. Resolvera que iria dormir na rodoviária e fazer seu show no outro dia, quando esta estivesse bem movimentada. Por isso agora ele está a trocar a roupa, tirando a roupa de trabalho e colocando aquela que lhe serve de traje de gala e de pano de chão.

Foi nesse momento que Avó entrou no banheiro...

À princípio Ele não a viu. Ela, sim, o viu. Viu e relembrou sua juventude, o prazer que apenas uma vez sentira, antes do casamento. Sim, fora apenas uma vez, ela lembrava bem. Fora uma moça à frente de seu tempo. Transara antes do casamento com aquele que viria a ser seu marido. Ele a fez sentir coisas que jamais sentira, nem quando brincava consigo mesma nas tardes frias, durante a adolescência. Sim, fora aquele único dia de prazer que fizera ela se apaixonar por aquele homem horrível. Nunca mais uma transa deles seria tão boa. Na lua-de-mel ele já mostrou que jamais voltaria a ser o amante carinhoso e delicado que havia sido uma vez. Ele era promíscuo e violento. À princípio ela achara exótico, mas até mesmo o exótico torna-se nojento com a rotina. Mas era naquela sua primeira transa que Avó lembrava agora.

Maroto assustou-se ao ver a velha parada atrás de si. Sua nudez, sua vergonha exposta à uma desconhecida. Ele por um momento lembrou-se de sua primeira transa, também. Fora no início de sua adolescência. Seu pai, aquele homem repugnante a quem Ele agora iria rebaixar-se e pedir ajuda o levara à uma dessas casas em que o dinheiro faz o prazer, para ter certeza que seu filho não era um boiola. Seu pai escolhera a mulher com quem Ele deitaria. Não era a mais bonita, nem a mais delicada. Era a mais fogosa. Seu pai conhecia muito bem todas as mulheres daquele local para saber muito bem com qual seu filho deveria deitar. E escolhera pessimamente. A mulher deveria ter uns trinta anos a mais que Maroto e fora fogosa demais, a ponto de assustar o rapaz. Durante toda a sua vida ele lembraria como o prazer havia sido substituído pelo medo, naquela noite. Lembrou também do rosto de sua mãe ao ver ele e o pai chegando em casa, ambos com cheiro de estábulos e mulheres que usavam perfumes para disfarçar o cheiro de vários amantes numa só noite.

Naquele banheiro Maroto reparou que Avó era muito parecida fisicamente com sua primeira mulher. Avó reparou que Maroto era muito parecido fisicamente com seu marido, aquele em que por uma noite amara, durante a juventude.

Não houve nem sequer uma frase. Avó se perguntaria mais tarde o que a levara a adiantar-se para aquele corpo nu, aquele rosto pintado e sem expressão, que vira apenas uma vez em sua vida, nem três minutos antes. As mãos enrugadas deslizaram pelo corpo não tão formoso do palhaço. Ele, assustado, viu uma chance de provar que não tinha medo da experiência que essas mulheres mais velhas têm.

Despiu Avó com as mãos trêmulas, e nem por um momento o fato de estar prestes a transar com uma velha desconhecida num banheiro público pareceu-lhe estranho. Estava acostumado com a promiscuidade da vida das pessoas que vivem na rua.

Eles transaram ali mesmo, sem nem um porquê. Os pés descalços pisavam nas sujidades alheias no chão do banheiro público. O espelho rachado na parede refletia rostos de desconhecidos que por um momento se amavam. O prazer das recordações. O calor vindo do frio dos azulejos. As roupas jogadas sobre uma poça de urina. Tudo parecia dar um ar irreal na cena. Aquilo obviamente era um sonho dos dois, algo impossível de estar acontecendo.

As mãos de maroto passavam pelo corpo flácido da Avó. As mãos da Avó passavam pelo corpo rígido de Maroto.

Então acabou. Sim, rápido. Não deve ter durado mais de dez minutos, mas certamente os dois haviam chegado ao êxtase. Ela vestiu suas roupas rapidamente, mesmo sentido que a urina do chão agora estava nas suas costas. Ele ficou ali, sem saber o que fazer. Virou-se para o espelho e viu seu rosto, sua maquiagem de palhaço borrada. Ele sentiu que essa senhora poderia ser a salvação de sua vida.

Enquanto isso Avó acabava de calçar suas sandálias. Sentiu então um volume nos bolsos. Os anéis. Sentiu também que poderia ser a salvação da vida desse rapaz, e talvez ele da sua, mas tinha vergonha de lhe dizer isso.

Num gesto de extrema bondade, talvez, ou de vergonha por ter desfrutado de um corpo que não deveria jamais ter lhe pertencido, Ela pôs os anéis no bolso da calça de Maroto. Saiu correndo porta afora, com vergonha de si mesma, uma lágrima borrando-lhe a fina maquilagem. Teria que arrumar uma desculpa para não ter esperado o horário do ônibus dos netos. Diria, talvez, que se sentira indisposta pela cerveja quente, ou algo assim.

Maroto vestiu-se. Na perna esquerda da calça uma mancha escura que ele constatou pelo cheiro, ser merda. Limpou seu rosto da pintura que escondera a sua face da velha amante e saiu do banheiro. Nos primeiros passos fora dali foi abordado por um policial. Este vira uma velha saindo chorando do banheiro masculino e tirou a conclusão de que fora assaltado. Apenas com as palavras “Parado, Vagabundo”, o guarda atirou Maroto contra a parede, o rosto dele ao lado da plaquinha apontado para o Ponto de Táxi, e começou a revistá-lo. Não foi difícil achar os anéis no bolso. Deu um soco nas costelas do meliante e só disse um “Tá preso, filho da puta”. Maroto ao ver os anéis na mão do policial assustou-se, como seria de se esperar. O instinto fez com que empurrasse o policial e saísse correndo. Não devemos chamá-lo de burro, pois sabemos que os animais têm muito desses atos inesperados.

Também não julguemos o policial que desferiu três tiros nas costas de Maroto. Ele estava já a um passo de perder seu emprego, por irresponsabilidades anteriores. Ele tinha uma mulher e filhos para alimentar. Se a velha desse queixa do sumiço dos anéis que pareciam de tanto valor e ele tivesse que confessar que deixara o meliante escapar, certamente seriam estas suas últimas palavras no emprego.

Maroto bateu com o rosto numa lata de lixo, e depois caiu no chão. Um pouco da maquiagem que não fora bem limpa, atrás da orelha, ficou suja com sangue. Morreu sem ter que se rebaixar ao seu pai, ao menos.

Avó, meses depois, tomou vários daqueles comprimidos de tarja preta que ocupavam uma gaveta no quarto. Peço desculpas àqueles que ainda queriam ver algum romantismo nesse conto. Não o fez por querer morrer junto com aquele que lhe relembrara o que era o amor, nem tampouco por peso na consciência. Ela se matou ao ver um de seus netos padecer pelo consumo de cocaína e ver que o outro neto casara-se, fora viver no exterior e não lhe escrevera um postal, lhe dera uma ligação sequer por meses. Sentira-se inútil.

A morte lhes salvara de uma existência triste, talvez. Talvez eles pudessem ter salvado um da existência triste do outro. Mas de que adianta divagar sobre isso agora?

Assim é a vida. Assim é a morte.