quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

Um pouco de Saramago






Entrevista de José Saramago ao Jornal da Globo.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Contraponto

(Os faróis do velho Gol iluminaram o homem parado na escura praça, quase deserta. O homem, com um capacete vermelho, aproximou-se do carro, que mesmo parado continuava com o motor ligado, e bateu no vidro fumê do lado do motorista. Uma fresta abriu-se na janela e uma mão fina, mas mal-cuidada, apareceu segurando um rolinho de dinheiro. As mãos dele contam rapidamente a quantia. A mão direita dele guarda rapidamente o rolinho no bolso direito. A mão esquerda dele retira um saquinho do bolso esquerdo e o entrega na mão esquerda dela. Ela usa a mão esquerda para fechar a fresta do vidro. As duas mãos dele se escondem nos bolsos, para fugirem do frio. Ele se vira de costas e volta para a sua moto. Ainda tinha outras encomendas a entregar.)

Dentro do Gol não estava apenas a mulher de mãos mal-cuidadas. Ah! O nome dela é Yara, caso alguém queira saber.
No banco do carona um homem olha-a, com certa pena.
-Há quanto tempo você cheira?
-Dois anos. - responde ela, já com a nota de R$ 10,00 na narina esquerda.
Ela aspira.
Ela respira.
Seus olhos viram-se para o teto do carro, com seu forro sujo pela fumaça de cigarros, e depois somem atrás das pálpebras. O coração bate.
Ele diz
-Dois anos. Nós não nos víamos há mais de dois anos, quem diria. Você mudou tanto.
-Você também
ela responde, de olhos fechados, antes de perguntar
-Você parou de cheirar?
-Sim, há mais de um ano!
-Ainda dá tempo de voltar. Sobrou um pouco. Quer?
-Não. O tempo que passei na clínica me mudou.
Ela pula pra cima dele, agarra-o pela gola da camisa azul e, cravando seus olhos de pupilas dilatadas na luz do poste que refletia nos olhos dele, diz
-Eu te amei, mesmo, sabia!?
-Eu também te amei
ele disse.
-Por que nunca demos certo?
-Por que éramos diferentes.
-Nós mudamos.
-Mas continuamos diferentes. Seremos sempre a água e o vinho. O bem e o mal. O ing e o yang. O preto e o branco.
Ela crava as unhas na gola dele
-Seremos sempre homem e mulher. Não existe bem sem mal! Nem preto sem branco! Nem ing sem yang!
-Nem Chitãozinho sem Xororó
ele debocha.
Ela ri
-Eu te amei.
-Eu também.
ele a faz soltar sua gola.

(O nome dele é Ignácio. Fora o melhor amigo de Yara por muito tempo. Cresceram juntos. Descobriram o sexo juntos. Descobriram um ao outro e a si mesmos. Juntos. O clichê dos opostos que se atraem. Não tinham nada a ver um com o outro. Nada.)

Ignácio começou a falar calmamente
-Sabe. Eu sempre quis ser como você. Eu achava nas drogas uma maneira de me rebelar, de ir contra meus pais, contra aquela maldita escola e aquelas professoras verruguentas, mas no fundo, lá no fundo, mesmo, o que eu sempre quis foi me encaixar em todas as regras, como você. Você era linda, inteligente, popular. Poderia ser a estrela de qualquer filme bobalhão adolescente. Você era perfeita. Sabia tudo sobre todos os livros, todos os músicos, política, economia, sociologia. Eu era apenas um hippie, meio gótico, meio punk. Qualquer novidade de visual me atraia, mas por dentro eu sabia que só era revoltado com o mundo por não saber como me encaixar a ele. Experimentava todas as drogas, andava com gente que sabia que nunca iria me fazer bem. Meus pais, coitados, sofreram tanto por minha culpa. Sabe, Yara, quando meus velhos nos viam juntos, ficavam felizes. Você era a única coisa que deixava eles felizes. Eles achavam que você iria me mudar, "entrar nos trilhos". Eles estavam certos. Foi você que me fez mudar. Se hoje sou considerado um exemplo na clínica de reabilitação, foi por sua causa. Eu me agarrava nas suas lembranças, em todas as vezes em que eu te oferecia um baseado e você recusava. Você era perfeita. Eu mudei. Por você.

Yara começou a falar, não tão calma quanto ele fora
-Já eu não aguentava a felicidade, a perfeição. Eu via tudo e percebia que meu mundo era cor de rosa, minha família perfeita, minhas notas brilhantes. Mas não era aquilo que eu queria. A segurança sempre me amedrontou. Me deixava insegura. Você era diferente. Era loucão, não estava nem aí pra nada. Eu queria ser desligava dessa merda de mundo. Sabe aquela sensação de estar desperdiçando sua vida? De estar dando atenção demais a coisas que não levam a nada? As músicas não me faziam felizes, nem os livros, nem porra nenhuma. Só você me fazia feliz. Só com você eu me sentia completa. Meus pais, coitados, sempre foram felizes. A única sombra de preocupação que passava pela cabeça deles era se um dia eu resolvesse transar antes de ir a uma ginecologista. Lembra da nossa primeira vez? Eu só fodi com você porque minha mãe disse "Vai filha, faz o que quiser", pois eu tava tomando pílula que a ginecologista me recomendou na semana anterior. Até pra sentir prazer eu necessitei de permissão. Quando você foi embora, me senti vazia. Completa de vazio. Solidão dentro dos olhos. O mundo na garganta, mas trancado lá. Depois que você foi embora... Eu mudei. Por você.

(Não preciso dizer que os dois sabiam que nunca dariam certo)

Ele disse
-Vou descer e chamar um táxi.
-Me leva com você!
ela implorou.
-Eu vou voltar para o lugar de onde eu não deveria ter voltado.
-Você vai embora?
-Sim.
-Eu poderia completar você.
-Nós já nos completamos.
-Então por que não podemos ficar juntos?
-Porque somos diferentes. Sempre fomos. Podemos mudar, mas sempre seremos diferentes.
-Seria chato se fôssemos iguais.
-As coisas que dão certo são chatas.
ele concluiu.

(Ele desceu do Gol, pegou o celular e discou o número do táxi. Ela ficou dentro do carro, o observando parado na esquina, até o outro carro passar por ali e levá-lo embora. Em qualquer despedida ela sempre tinha a sensação de que era para sempre...)

Yara pegou o celular, procurou um número na agenda, com certa dificuldade, pois chorava convulsivamente, engasgando, engolindo o pranto, falando coisas sem sentido. Quando a pessoa do outro lado da linha atendeu ela gritou
-Mãe. Por favor. Eu preciso de ajuda. Eu vou parar, eu juro!

Ignácio entrou no táxi, cravou os cotovelos nas pernas e escorou a cabeça nas palmas das mãos.
-Para onde, senhor
perguntou o taxista.
-Para a Vila Santinho.
-Aquele lugar é barra pesada. Eu só posso deixar você na entrada da vila. Quer ir pra lá mesmo assim?
-Sim, eu quero.